sábado, 20 de outubro de 2007

AURÉLIO NÃO SACA TUPI.

Augusto era professor de português, talvez, por isso, levado a sentimentalidades. Era tocante o modo como falava de toda normativa portuguesa e não fazia segredo de sua preferência por quem pronunciavam bem as palavras. Falou certa vez a um aluno:
“Agora sei o motivo de sua obesidade, é de engolir esses”. Teve que se explicar com a diretora e com a mãe do menino.
Português era sinônimo de carinho e enlevo, sentia uma fluidez inenarrável ao lecionar metacrese. Andava de romance com livros de auto-ajuda e não podia ouvir falar em palavras negativas, positivando mentalmente, atacava:

- Vocês sabem o que quer dizer “impar”? “im” mais “par”, é literalmente “não par”. (Odiava.)

Gostava mesmo era de refletir:

- Sou igual aos monossílabos tônicos, não possuo definição, mas tenho várias pronúncias. E sorria diante de frase tão filosófica.

A namorada que no começo elogiava tantos predicados, com o tempo percebeu um hiato entre os dois. Ela é cientista e num mundo de homens cheios de porquês, conhecer um com acento diferencial era um bálsamo. No entanto, Olívia começou a aborrecer-se com as correções sistemáticas de seu vocabulário, com os intermináveis monólogos sobre a dicção carioca e pior de tudo, em ser comparada com Marília de Dirceu, ora, tudo tinha limites, antes fosse Ema Bovary. Olívia deu um basta. Mandou sua verbarrogia pra casa do caralho e bateu a porta sem deixar bilhete ou definição.

Augusto ficou arrasado. Olívia era uma descarada, um falso hiato, igual a “Piauí”, um caso clássico. Se fosse trocá-la em miúdos não iria restar uma oxítona para contar história.
Começou a ir mal na escola, tornou-se cabisbaixo, tristonho e para seu espanto deu para errar até ortografia. Foi afastado com a promessa que se não melhorasse, era demissão. Foi para casa desarvorado, retirou o Aurélio do pedestal e fez um chá com as folhas, acordou num hospital com a língua preta internado por intoxicação.

Enquanto Augusto padecia de suas dores ortográficas, Olívia partiu para o Alto-xingu decidida a ganhar o prêmio Nobel de ciências. Em uma das incursões, conheceu Meinalu, um índio Tupi. Olívia sempre fora louca por novas línguas e culturas, principalmente quando elas estavam dentro de um invólucro alto, jovem e robusto, e quando Meinalu, encarnando seu xamã-tigre, aparecia nu como Deus o fez, Olívia fechava os olhos e dava graças a Tupã por não entender um “a” em Guarani.

4 comentários:

Aureliana Rosa disse...

esse texto é muito bom que só! (só podia, né?)

Natalie disse...

Esse é um ótimo conto! Adorei, muito divertido e leve. Delicioso! Aliás, todo o blog tem esse caráter, leve e delicioso... Muito bom mesmo.

Douglas Evangelista disse...

Bom, cheguei aqui sem nenhum conhecimento prévio de arte mas, pasmem, vi luz.

Muito bom o texto. Aliás, muito boa proposta do blog de vocês, meninas. Mas fui enganado: há poesia sim, por aqui.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.